ELIZANDRA SOUZA

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Por que escolhemos nos cegar?

Um dos grandes mitos conhecidos é a tragédia grega de Sófocles, "O Rei Édipo", onde dentre muitas conturbações, Édipo mata o pai e casa-se com a mãe, sem ter conhecimento deste parentesco. Mas sua punição por estes atos foi cegar-se. Ele fura os próprios olhos para se castigar do pecado. Mas dentre tantas interpretações que se somam a este mito, podemos pensar que o ato de cegar-se pode sugerir um não querer ver o que fez - não querer saber de seu comportamento, de sua responsabilidade.

Freud trouxe este mito para exemplificar a relação apaixonada da criança pela mãe. Porém, não quero trazer este ponto, que tão famoso ficou, mas que o senso comum insiste em apresentar com uma explicação vazia e sem consistência.

Portanto, proponho uma reflexão sobre o ato de cegar-se que o mito traz, como forma de expressão e atitude na vida individual e social. Édipo fura seus olhos, pois não suporta sua verdade, pois não aguenta saber que suas decisões, tomadas até então, geraram sua desgraça. Édipo é conduzido pelo concreto. E, de certa forma, acredita que sua punição alivia a dor da consciência.

É difícil enfrentar os próprios erros, conflitos, frustrações, decepções, fracassos sem querer cegar-se, também como forma de anular ou encobrir estes fatos. Diante deles é melhor nada saber, nada ver. 

Fechamos os olhos diante de acontecimentos que só nos prejudicam. A corrupção disfarçada de ajuda. É difícil tentar entender que tipo de sujeito é este que tira de quem não tem (como no caso dos donativos e verbas para as vítimas do desmoronamento da Serra no Rio de Janeiro).

Tentamos nos enganar e enganar o outro quando nos afetamos por coisas que em nada significam em nossas vidas. Na realidade, quanto menos queremos enxergar os problemas que realmente dizem respeito a nossa vida, mais nos importamos com as questões alheias.

Não furamos literalmente nossos olhos, mas nos cegamos como se produzíssemos uma  espécie de catarata, em psicanálise utilizamos o nome escotomizaçào, que significa uma recusa em perceber, enxergar a realidade a nossa volta.

Utilizamos o outro como forma de reconhecermos a nós mesmos, como um espelho que  nos devolve indagações sobre nossas próprias questões. Mas, há momentos em que usamos o outro como pura forma de projeção, onde despejo minhas frustrações como se dele viessem. É neste momento que coloco o outro como responsável por minha destruição  - e minha salvação.

Para não cegar-se, é preciso se implicar. E esta implicação não está nas afetações vazias, nas discussões sem propósito ou nas reclamações que não transformam. Repetir os fatos jornalísticos e sensacionalistas é como discutir as ações dos personagens das novelas. Não é, de maneira nenhuma, uma forma de implicação, ao contrário, é mais um movimento de se permitir ser enganado, ser objeto da exploração midiática, enquanto as questões mais profundas e relevantes que constroem ou destroem uma sociedade estão encobertos.  

A grande dificuldade em amadurecer, em crescer, em tornar-se adulto é apresentada nas micro e macro esferas da sociedade. Vivemos alternando as posições de sujeito e objeto. Ora, vamos em busca de nossas vontades, brigamos por alguma opinião e decidimos o que vamos fazer. Ora, solicitamos o outro para que nos cuide e proteja.

Mas nossa demanda pelo outro é posta, equivocadamente, na medida em que não queremos assumir nossas responsabilidades sobre nossas escolhas. Na medida em que, esperamos que o outro faça por nós, que tome conta da nossa vida, então assumimos a posição de objeto, que não fala, não reclama, não escolhe. E sua passividade contempla somente a vitimização.

Social e culturalmente estamos arraigados pelo discurso da vitimização, pois na medida em que coloco o outro como responsável por meus caminhos, ao mesmo tempo, me coloco como seu subalterno, sou submisso e, portanto, vítima de suas escolhas.

Os sujeitos que padecem da posição objetal escondem-se do constructo da conquista. Não buscam, não constroem objetivos, não focam um ideal. Ficam à espera de que os outros arranjem, de os outros os coloquem - movimento visível nos jovens contemporâneos que sempre esperam que caia do céu um emprego, por exemplo.

Esta forma de cegar-se acontece tanto diante dos assuntos individuais como dos assuntos coletivos. Temos, por exemplo, aquela mãe que mesmo encontrando maconha na mochila do filho, acredita na desculpa dele de que é do amigo ou de que é uma planta qualquer para aula de biologia. Ou ainda, a mãe que ao encontrar camisinha na bolsa da filha, continua jurando para as amiga que a filha é virgem.  Ou seja, não querem enxergar a realidade a sua volta e preferem ficar agarradas às suas convicções e crenças. Talvez por medo, talvez por vergonha ou por qualquer outro motivo a cegueira é a melhor forma de lidar com aquela situação.

Mas também há uma cegueira social, que revela nossa negligência. Isto acontece, principalmente, quando nos são mostrados fatos que sugeririam uma implicação, mas não passam de questionamentos de poucos e discussões ao léu.

Como foi o caso das ONGs que receberam recursos públicos, ou seja, meu e seu, e enriqueceram seus donos, desconsiderando completamente seus objetivos, sua missão, sua filosofia, que em geral tem textos altruisticamente construídos.   

Enquanto isso, o voluntariado é exaltado e não percebemos que, dentre suas ações solidárias, também há um outro viés, como mais uma manobra de desresponsabilização do Estado e seus governantes diante de seus deveres. Por sorte dos corruptos somos solidários, mas infelizmente, esta solidariedade somente facilitam os desvios.

A solidariedade é o caminho do bem, mas também é um caminho escolhido como forma de desculpa para si mesmo, diante da nossa não cobrança, de nossa passividade.  Há diversas formas de cegar-se e a solidariedade ou o voluntariado extremos podem ser, também, uma forma de cegueira de si mesmo. Na continuação dos passos de não enfrentar a própria realidade, a própria dor, a pura angústia.

Elizandra Souza

Psicanalista

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