ELIZANDRA SOUZA

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O HOMEM DIANTE DAS RELAÇÕES DE CONSUMO

O HOMEM DIANTE DAS RELAÇÕES DE CONSUMO



Como suprir a carência do ‘ter’ na sociedade atual?



Em meio a tantos instrumentos de consumo, o sujeito se investe, cada vez mais, na roda do endividamento. Às vezes pela necessidade, outras por oportunidade, ou ainda, por descontrole. Endividar-se pode ser a única opção para muitos, enquanto outros escolhem e absorvem as dívidas como impulso de vida.



Existem, é claro, questões de profundidade e complexidade quando analisamos mais detalhadamente estas construções de relação. Numa visão psicanalítica, salientamos os aprendizados das relações anteriores (na infância), que influenciam ou geram os modos atuais.



As coisas não se produzem sozinhas. São criadas através das relações entre pessoas, objetos e posições. Assim, também acontece com os sintomas sociais, que são construídos e demonstram uma forma de experimentação de uma população ou de uma cultura.



Esta sociedade, em que a supervalorização em torno do ‘ter’, num movimento quase histérico (quando não é realmente), produz sujeitos que não aceitam suas carências, seus vazios, suas fendas. Enquanto vivenciam a cultura do ter, os sujeitos acumulam bens e dívidas e se distanciam do ‘ser’, do olhar para si e do cuidar de si.



O sujeito está desaparecendo, fazendo afunilar a relação ser e ter. Se o sujeito não responde mais por si, quem responderá? Desaprendemos a dizer quem somos nós, mas contamos facilmente o que temos. Se existem hoje, até patologias que se engendram pelas questões profissionais, então também podemos considerar os aspectos patológicos das relações de consumo.



Para além do ‘ter’, existe um sujeito que não se sabe, mas que está em busca deste conhecimento, porém, talvez, pelo caminho mais tortuoso. Por outro lado, prejudica as relações com as pessoas e demonstra sua formação incompleta.



Os objetos a serem consumidos, vão e vem, melhores, menores, mais coloridos. Esta transição de objetos nos indica o quanto os valores estão perdidos, e mais ainda, a impossibilidade do sujeito em resgatar o valor das coisas. Descartar objetos é tão comum que quase não percebemos o quanto fazemos isto.



O montante de bens adquiridos, principalmente, os acessórios, constrói, paralelamente, o desperdício. O celular deste ano tem tecnologia mais avançada e faz com que o do ano passado já seja obsoleto, porém, não irá mais servir para o ano que vem.



Mas o que podemos pensar sobre esta falta de valor que damos às coisas? Se descartamos objetos por perderem valor de interesse, qual será nosso sentimento de valorização para aquilo que, aparentemente, não nos interessa, como por exemplo, as pessoas? Quando ornamentamos os sujeitos do ‘ter’, qual olhar teremos para sujeitos do ‘não ter’?



Hoje, os endividados são, ao mesmo tempo, produtos e produtores da sociedade. Isto significa que aquele que se diz ou é dito devedor, apenas responde, de um certo lugar, ao constructo social atual. Seja pela necessidade, pela facilidade ou, mais inconscientemente, como forma de (re)conhecimento, endividar-se é um meio de sobrevivência.



A sucessiva criação de dívidas aponta fatores variados e não mais é considerada, simplesmente um despropósito do endividado, por isso a relação entre devedor e credor abrange aspectos sociais, econômicos e, principalmente, aspectos culturais. Isto ordena um novo olhar sobre o devedor, que não mais pode ser desmoralizado, ao contrário, é visto hoje como participante ativo da economia do país.



Diante do devedor, o credor somente está do lado oposto, num determinado momento, neste jogo de posições. Posições que são ocupadas em certas situações, e onde os sujeitos circulam e transitam, como qualquer movimento natural da vida. Então pensamos, será possível, hoje, viver sem ter dívidas?



Devedor e credor estão intimamente ligados, tal qual todos os outros opostos conhecidos: amor e ódio, bem e mal, dia e noite, quente e frio, onde a inexistência de um, esgota todas as possibilidades do outro existir.



Estamos diante, mais uma vez, de nossa incapacidade em ‘não saber’. Procuramos respostas para tudo. E acreditamos que muitas respostas estão nos objetos que podem e devem ser consumidos. Não damos tempo para nossa incompletude. Nossa busca é desenfreada pelo pertencimento, onde não cabem mais questões como ‘quem sou eu’ ou ‘o que quero para mim’.



Se, respeitar é olhar para as coisas por outro ângulo, de outro lugar, o respeito mútuo entre estas posições subjetivas e sociais é condição essencial que suplanta a concordância das partes e viabiliza sua perpetuação.


Elizandra Souza
Psicanalista
Diretora da Comissão de Ética do SINPESP
www.elizandrasouza.com.br

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